4 de agosto de 2020
Olha, uma coisa eu posso dizer a você: passar por momentos históricos é realmente desafiador. O que a gente está vivendo agora me lembra as aulas de história e as perguntas que vinham em minha cabeça sobre como as pessoas viviam em situações de vida como essas.
Quando que eu poderia imaginar que adultos vivem história o tempo todo, enquanto eles mesmos deixam suas marcas e contam suas histórias ao longo da vida. Ah, a cabeça jovem…
Nos últimos meses me peguei pensando nesse movimento de estrutura bem saturninos que passam pelo nosso planeta agora. O que é esse tal de novo normal que falam por aí? Ou ainda, o que é o novo normal que estamos buscando? Qual é o novo normal que estamos construindo?
Em momentos de crise tendemos a procurar o que foi feito em crises anteriores para lidar com comportamentos e emoções de agora. Buscamos o novo normal, o lugar de segurança e conforto que nos garante sobrevivência e isso ressalta o privilégio de poucos e a falta de estrutura de muitos.
🚨 Um aviso: Esse texto levanta mais perguntas do que tem respostas.
Segundo Maria Aparecida Rhein Schirato, professora do Insper:
“Quando a sobrevivência e a proteção ficam ameaçados, já não consideramos algo como normal. A normalidade, portanto, seria a constituição de um padrão que assegura às pessoas que estão contidas nele uma certa proteção, segurança, continuidade, e, portanto, sobrevivência. O novo normal, na verdade, seria a proposta de um novo padrão que possa garantir nossa sobrevivência.”
Este novo padrão que garante nossa sobrevivência é como se fosse um kit de segurança: vamos andar de máscara, lavar as mãos com mais frequência, evitar ficar em lugares fechados, ficar a distância mesmo de pessoas que gostamos e respeitamos.
No início a adaptação é estranha. Mas depois de um tempo… o padrão passa a ser o tal do novo normal e a gente se sentirá estranho depois se parar de adotar as medidas de segurança.
Compartilhei aqui nesse post algumas das medidas que estamos tomando na reabertura e que já significam mudanças de hábitos e comportamentos. Novo normal é construção, a nível individual e a nível coletivo. Ou pelo menos, não é o que deveria ser? Qualquer futuro desejado é construção do que é feito hoje. Assim como realidades atuais são apenas produtos de decisões tomadas e vividas anteriormente.
Gosto muito do trabalho do Tiago Mattos e suas rápidas pílulas sobre o futuro e me conecto com esses pensamentos do autor que aqui compartilho:
“Está todo mundo repetindo o clichê: ‘o mundo não será como antes, existe um novo normal’. Pois uma reflexão: qual é a mudança radical, que você já adotou para sua vida, e que vai permanecer pós-quarentena? Se você não sabe descrevê-la, será que você já adotou esse novo normal?
Não temos que projetar o futuro do mundo como conhecíamos. Ele não existe mais. O desafio é projetar o futuro sob um passado que não vivemos.
O que é futuro para um camponês de vida simples muitas vezes já é passado para um privilegiado de grande metrópole. O futuro é um fenômeno temporal, geográfico e afetivo.
Portanto, só entende o tempo quem tem um bom calendário, um bom mapa e um bom coração.”
Essa quarentena me fez ter muito mais perguntas do que respostas. Mas as perguntas são parte do processo de autoconhecimento e evolução, então acredito que o questionamento da nova estrutura e do futuro que queremos no trabalho, na educação, no mundo… levam a novas escolhas realizadas a cada dia.
Nem todo mundo vive o tédio nessa quarentena, mas todos precisam olhar para a saúde mental que é afetada. As desigualdades são inúmeras: desigualdade de oportunidades, de acesso, de educação e até mesmo desigualdade de distrações, que comentei mais nesse podcast.
Se a normalidade que o mundo anseia é a mesma normalidade que vivemos antes, TÔ FORA!
Nós vivemos em um mundo de humilhações, assédios, pessoas com depressão, sobrecarregadas, baixos salários, turnos e jornadas insanas, trabalho infantil, abusos e valorização extrema do trabalhe, trabalhe, trabalhe. Horrível pensar que essa situação faz parte do dia a dia de muitos, mas é. Ainda é. Precisamos mudar a nossa forma de encarar o mundo e sermos mais responsáveis com esse planeta que estamos vivendo.
O novo normal está na nova escola, no novo trabalho e no novo jeito de respeitar nosso lado humano. A gente precisa falar sobre isso, denunciar casos inaceitáveis e usar a nossa voz para construir um mundo, uma vida e empresas mais conscientes. Nos últimos anos, foram vários e vários alunos que chegaram tristes, estressados, depressivos por causa do que o trabalho fazia com eles. Foram várias alunas que chegaram até mim cansadas da sobrecarga feminina imposta a elas diariamente.
O movimento que estamos vivendo hoje carrega uma forte energia matriarcal para desenvolvimento da humanidade, que ao invés da competitividade preza a colaboração, que ao invés do reto e direto, experimenta ciclos e adaptações, curvas, fases. Que ao invés de priorização de posses, acúmulo e pressa para o sucesso, passa a enxergar a paz no cuidado consigo, com o outro e com o todo, em pura demonstração de empatia e vulnerabilidade, ou ainda, da principal força de nós mesmas.
Complemento o pensamento com um texto da historiadora Marjorie Chaves, presente neste post do Instagram:
“O resto do mundo anseia pela volta da normalidade. Para as pessoas negras, normalidade é exatamente aquilo de que queremos estar livres’, disse Roxane Gay. É comum que as pessoas adiram a expressões em voga, como o ‘novo normal’, que seria a proposta de um outro padrão de comportamento para garantia da sobrevivência: usar máscara, lavar as mãos sempre e manter o distanciamento social. Mas o termo vai além, trata do novo uso das redes sociais, do trabalho remoto e da educação online. A disseminação de lives sobre qualquer coisa é um exemplo disso.
As aulas, cursos e palestras online, um recurso possível neste momento, funciona para um grupo seleto de privilegiades, porque não se trata apenas do acesso à Internet, mas de ambiente adequado e de equilíbrio do uso do tempo. Eventos acadêmicos estão mantidos em formato virtual e será assim depois que a pandemia passar, não porque seja mais interessante, mas porque as instituições perderam recursos do Ministério da Educação.
Como posso chamar de ‘novo normal’ o fato de as mulheres estarem sobrecarregadas, sem dividir de maneira equânime o trabalho doméstico e de cuidados com os homens? O crescimento da violência de gênero em casa, no espaço que deveria ser de proteção? O ‘novo normal’ inclui conformar que pessoas negras têm menos chances de sobreviver ao coronavírus e que, se não morrerem em consequência da doença, poderão morrer dentro de casa por bala disparada pelo Estado antinegro.”
O novo normal deve ser feminista e anti racista, percebe? Digo deve porque até então, no “novo normal” visto em período de pandemia, a desigualdade permanece.
Vou jogar mais alguns dados aqui da Organização Segura a Curva das Mães pra engrossar o caldo dessa análise:
“Precisamos de uma nova escola. A atual prepara para um mundo que não existe mais.” Tiago Mattos
Infelizmente o Brasil não coloca educação como prioridade. Como então pensar na adaptação do ensino regular para o ensino a distância? Esse é um trabalho de anos! E estamos muito atrás nisso. O próprio MEC assume que desconhece a realidade do ensino remoto no Brasil.
O Brasil tem 48 milhões de crianças e adolescentes sem internet em casa.
A falta de acesso dos alunos a internet, a falta de conhecimento de educação digital, a falta de preparo dos professores e a sobrecarga dos mesmos para atuação no mundo online… some tudo isso a equipamentos sem qualidade das escolas e falta de planejamento para dinâmica do ensino à distância e o resultado será crianças sem suporte, perdendo aulas e ficando para trás. E os educadores exaustos e frustrados!
Durante as férias, estudantes que possuem baixa renda acabam sendo mais prejudicados. Eles deixam de contar com refeições nas escolas que geralmente oferecem de uma a duas refeições por dia. Enquanto as crianças com maior renda desfrutam de experiências, leituras e novos aprendizados durante as férias, as crianças com menos recursos, acabam esquecendo o que aprenderam. Imagine então o que está acontecendo com essas crianças há mais de 5 meses em 2020 sem acesso à educação.
Os pais de repente precisam gastar mais com comida, talvez seus empregos tenham mudado, talvez só tenha um parente nessa família para cuidar das contas da casa. Em casos extremos, crianças começam a trabalhar para dar conta das questões da casa e o estudo… bem, deixa de ser prioridade, infelizmente.
Acredito que depois de alguns meses, com a vacina já funcionando, vamos ter uma normalidade nova. Ela terá mais cuidado (ou neura pra alguns) e mais germofóbicos espalhados por aí, é verdade. Mas espero que o que estamos vivendo hoje seja porta para mudanças significativas mais a frente. Não dá pra querer fazer diferente, repetindo as mesmas coisas.
A Google se posicionou no primeiro semestre de 2020 sobre distribuição de recursos para combate a desigualdade e fortalecimento de iniciativas educacionais:
“Também estamos comprometendo quase US $ 3 milhões para ajudar a diminuir as diferenças de igualdade racial no ensino de ciências da computação e aumentar a representação do Black + nos campos STEM. Isso começa com a garantia de que os estudantes negros tenham acesso a oportunidades desde o início de seus estudos. Para isso, estamos expandindo nosso currículo do CS First para mais de 7.000 professores que atingem mais de 100.000 estudantes negros, escalando nosso programa de Habilidades Digitais Aplicadas para atingir 400.000 estudantes negros do ensino médio e médio e fazendo uma doação de US $ 1 milhão ao Google.org para o Campanha DonorsChoose #ISeeMe, para ajudar os professores a acessar materiais para tornar suas salas de aula mais inclusivas.
Além da sala de aula, aumentamos nossos prêmios exploreCSR para mais 16 universidades para abordar lacunas raciais na pesquisa e na academia de CS, e também apoiamos o Black in AI com US $ 250.000 para ajudar a aumentar a representação negra no campo da IA.
Esses esforços se baseiam em outras iniciativas educacionais, incluindo o CodeNext, focado no cultivo da próxima geração de líderes tecnológicos da Black e Latinx, e no TechExchange, que tem parceria com faculdades e universidades historicamente negras (HBCUs) e instituições de atendimento a hispânicos (HSIs) para atrair estudantes no campus do Google por quatro meses para aprender sobre tópicos de gerenciamento de produtos a aprendizado de máquina.”
Só veremos uma real mudança na educação, quando houver mudança no acesso.
O novo normal encara a aceleração da expansão do EAD e do Homeschooling. É preciso a implementação de novas práticas de conexão entre famílias e escolas no processo de aprendizagem. Podemos enxergar com facilidade o aumento das desigualdades educacionais que acontecem por conta da falta de internet e equipamento nos ambientes domésticos, já que a maioria da população pobre tem acesso limitado via celular pré-pago.
A desigualdade de acesso acaba influenciando uma série de desigualdades sociais. Se uma criança não tem um lugar pra estudar, não tem comida, não tem estrutura, não tem acesso a informação, dificilmente ela terá um lugar de conforto na sociedade.
Políticas públicas ainda não olham com carinho devido para educação, muito menos para educação digital. Enquanto famílias ricas possuem enciclopédia, TV e internet em casa, famílias pobres dividem o acesso dados de um pacote pré pago no celular.
Se um mês de férias já faz diferença no aprendizado dessa criança, imagina só o que está acontecendo na pandemia! O novo normal deve ser inclusivo e digital. A escola não é apenas o lugar que o aluno vai pra ver quadro negro e fazer prova. Escola é espaço de conexão com o ser humano, de descoberta de si mesmo e do outro, espaço de acesso e suporte ao essencial para tantas famílias com poucos recursos. Escola é espaço de crescimento e alimentação.
A gente precisa mergulhar mais fundo ao falar de novo normal e não simplesmente aceitar sem debater ou ainda, sem buscar a real mudança.
Enquanto o mundo corre para voltar a normalidade, use seu tempo para avaliar que normal vale a pena voltar e que normal você está construindo hoje.
Conheça o Caminho da Jornada de Organização